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Escutar é permitir que o outro aconteça*

  Percebe-se que em tempos atuais são de vozes apressadas e ouvidos distraídos. A comunicação, que deveria ser ponte, muitas vezes se torna ruído. E nesse cenário, escutar, verdadeiramente escutar, é um gesto raro. Mais do que captar sons, ouvir é acolher. É abrir espaço para que o outro se revele, sem pressa, sem moldes, sem interrupções e que isso aconteça em sua própria lógica, com seus ritmos, pausas e silêncios. Porque há uma diferença profunda entre ouvir e escutar: a primeira é função dos sentidos; a segunda, é função da alma. Ser um bom ouvinte é estar presente. É suspender o próprio mundo por instantes para que o mundo do outro possa emergir. É não querer ocupar o lugar do outro, mas caminhar ao lado, com respeito e curiosidade. E isso transforma a comunicação em cuidado, transforma o diálogo em encontro. Ruídos na comunicação não são apenas sons indesejados. São interrupções, julgamentos, distrações, interpretações precipitadas. São tudo aquilo que impede o outro de...
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Filosofia Clínica: uma introdução*

Esta é uma breve introdução à Filosofia Clínica. Por meio dela, pretendo elucidar algumas dúvidas iniciais dos interessados em compreender esse método e, caso queiram conhecer mais, com as informações apresentadas, saberão como e o que buscar em outros textos e livros. A Filosofia Clínica, ao longo dos seus trinta anos, possui uma base sólida. Por isso, há muitos conceitos que requerem aprofundamento, pois apesar de ser “simples” na apresentação dos conteúdos constituintes do método, ela é complexa em sua aplicação, pelo fato de lidar com pessoas. Além disso, a prática muitas das vezes fundamentará a sua teoria. A  Filosofia Clínica visa auxiliar a quem procura terapia a alcançar seu bem-estar subjetivo, trabalhando suas questões existenciais conforme cada singularidade. É importante dizer que sem a noção de singularidade ela seria apenas mais um método terapêutico. Cada pessoa é única, possuindo a sua experiência de vida, sua cultura, seu modo de ver o mundo, seu jeito de sentir e...

Buscas e singularidades existenciais***

Nas primaveras de 2007, 2008, 2009 e 2010, após centenas de sessões, entendemos que já era chegado o momento de partir, cada um para uma direção própria e singular, intencionada para não mais proporcionar encontros terapêuticos presenciais. A partilhante em questão, uma profissional bem-sucedida da Engenharia da Computação e especializada em Inteligência Artificial, não satisfeita com o diagnóstico de autismo que veio somente aos 35 anos, iniciou uma busca que ela mesma nominou de “autoconhecimento versão 2.0”. Ela tirava as suas férias sempre nas primaveras, hospedava-se num hotel da cidade de Porto Alegre/RS e desde o primeiro dia dessa estação comparecia pontualmente às nossas sessões sempre previstas para ocorrerem das 7:30 às 8:45h no nosso consultório itinerante situado no parque da Redenção. Como regra, trabalhávamos de segunda a sábado, fizesse chuva, fizesse sol, e, como exceção, aos domingos, ela escolhera comparecer ao parque sempre sozinha para fazer o mesmo trajeto filosóf...

Hermenêutica Compreensiva***

Quando se pensa ou busca trabalhar com hermenêutica podem surgir várias dúvidas sobre o tema. Talvez a distinção mais significativa para a Filosofia Clínica esteja entre uma hermenêutica interpretativa e uma hermenêutica compreensiva. De forma introdutória, a hermenêutica interpretativa (também usada nas abordagens tradicionais da terapia) foca na busca por entender a mensagem com base no que já se sabe sobre o tema. Tem como ponto de partida um saber-poder estabelecido por definições bem construídas, ajustadas e fundamentadas, com base na tradição. Trata-se de um saber cristalizado, que confere ao texto existencial diante de si uma classificação previamente analisada, definida. Características reconhecidas mesmo antes de um encontro se realizar, demonstrando que a expressão do sujeito, de antemão, já está determinada. Em outras palavras, um fundamento estabelecido para reconhecer no  paciente  alguma  patologia , tendo como referência uma lógica de manual, destituindo a ...

Palavras ao vento*

Embora os jovens possam tornar-se geômetras, matemáticos e conhecedores de matérias semelhantes, não acredito que exista um jovem dotado de sabedoria prática. O motivo é que essa espécie de sabedoria diz respeito não só aos universais mas também aos particulares – que são conhecidos pela experiência. Ora, um jovem carece de experiência, que só o tempo pode dar. Por que um menino pode tornar-se matemático, porém não filósofo? É porque os objetos da matemática existem por abstração, enquanto os primeiros princípios das outras matérias provêm da experiência; e também porque os jovens não têm convicção sobre esses primeiros princípios, contentando-se em utilizar a linguagem apropriada, ao passo que a essência dos objetos da matemática lhes é bastante clara" (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, livro VI). É por isso que eu confio no trabalho de jovens tecnocientistas fazendo "ciência normal", mas desconfio de jovens políticos, magistrados e filósofos. * * * Uma cultura literária s...

A Dúvida e sua não existência*

  Já faz tempo que penso na sua não existência, não como forma de uma totalidade e, sim no pensar filosófico da coisa. Interessante observar a não existência de algo que na forma de minha escrita, dou vida. Sim, dou vida para imediatamente a tirar. Não quero aqui dizer que essa teoria simplesmente retira de nosso dicionário a palavra “dúvida”. Desejo demonstrar que sua existência, na verdade é um estado de preguiça do homem.   Sentir-se na incerteza entre duas saídas é um acomodar-se diante dos fatos. Vejamos o que a filosofia na história tem a nos presentear com conceitos, cito aqui (dicionário de filosofia, Nicola Abbagnano, Martins Fontes, 2003, pág. 296). Dúvida, esse termo costuma designar duas coisas diferentes, porém mais ou menos ligadas: “1º um estado subjetivo de incerteza, ou seja, uma crença ou opinião não suficientemente determinada, ou a hesitação em escolher entre a asserção da afirmação e a asserção da   negação; 2º uma situação objetiva de indeterminaçã...

Investigação das Águas*

“A imagem mental é a imagem que é descrita quando alguém descreve sua imaginação”. (Wittgenstein) Comer todas as palavras e certezas de palavras, vãos em muros, filamentos do tempo, a história, paixão e fome dos olhos, diafragma da alma, um escape de som, uma luz entre os corpos, um resto de palavras, o som quase silêncio entre o medo e a revelação, a fome do desejo nas paredes do tempo, e o corpo abundantemente dança em luz que suaviza os movimentos, o som perdido entre os livros, uma letra entre as letras, a formação de nuvens no outono, o céu se fecha, os olhos de sal, mareados, o instante final do esquecimento desaparece entre os restos dos dias, afasia da desrazão em águas profundas, um mar de realidade, um revestimento encobrindo a palavra, a claridade na luz do sol cortando o revestimento, o emergir. De volta. É como trazer as palavras e o corpo de volta à superfície. E os braços em longos, demorados movimentos, chapinhar entre plantas submersas, mistura de cansaço e carpas pass...

Forrest Gump*

Quando vemos o filme 'Forrest Gump', tendemos a nos colocar no lugar de quem viu o que "realmente" aconteceu e a narrativa do personagem principal, que dá nome ao filme, como quem viu algo de modo limitado. É como se nós tivéssemos uma visão privilegiada e, o outro, uma percepção limitada. A noção de que acessamos a "realidade" com "objetividade" pode trazer uma noção do outro como quem tem uma visão limitada pela inteligência, sentimentos, pontos cegos etc. No entanto, de certo modo, somos como o Forrest Gump. Nossa percepção do mundo é uma perspectiva. Tendemos a acreditar piamente no que nossos olhos e lembranças nos dizem sobre um acontecimento ou experiência. E não estamos errados. Pois é essa percepção ou visão de mundo que norteia nossa vida. Por isso, no consultório, não buscamos necessariamente o que aconteceu, mas como a pessoa vivenciou, interpretou, significou etc. o ocorrido. Pois não é a objetividade que marca a experiência que direci...

Aberturas existenciais***

Os processos de autogenia costumam revelar reorientação de rotas, reinvenção de rumos, abertura de caminhos. Em clínica, algumas vezes a pessoa inicia a terapia já nesse estágio de transformação pessoal. São tempos de travessia, onde pode ocorrer de a partilhante vivenciar suas experiências novas, pelo viés discursivo antigo e pelos princípios de verdade vigentes em seu grupo de convivência. Instantes que podem levar a pessoa a classificar suas novidades em discursos que apontam estranhamentos para si ou para os outros, tais como: "eu pareço uma adolescente"; "já me disseram que eu pareço uma personagem, que não vou sustentar isso por muito tempo", e, talvez a partilhante esteja apenas passando por um momento de abertura existencial a ressoar em ressignificação pessoal, familiar, de trabalho, novas buscas, experimentando desejos sexuais, atitudes de empoderamento frente aos que lhe exerceram poder ao longo da vida... Então, ainda que ela esteja saboreando e reco...

A linguagem das lágrimas*

Há momentos em que o silêncio se torna verbo. Em que o corpo, sem pedir licença, fala por meio das lágrimas. Elas escorrem como cartas escritas pela alma, revelando o que não pode ser dito com palavras. São confissões líquidas, desabafos silenciosos, súplicas que se derramam no rosto como se buscassem abrigo em quem as vê. As lágrimas têm uma gramática própria. Não seguem regras sintáticas, não precisam de pontuação. Elas se expressam em pausas, em soluços entrecortados, em respirações ofegantes que interrompem a fala. Às vezes, dizem mais no intervalo entre um soluço e outro do que qualquer discurso bem articulado. Há um tipo de verdade que só se revela quando o corpo já não consegue sustentar o peso do que sente. Chorar é, muitas vezes, um ato de coragem. É permitir que o mundo veja o que há por dentro, mesmo que por instantes. É abrir uma fresta na armadura que se veste todos os dias para enfrentar a vida. As lágrimas não pedem permissão para cair. Elas simplesmente vêm, como se...

Desarrazoados***

  A palavra possui múltiplas formas de expressão, quase sempre refém de seu uso. Compreender um sentido reivindica uma reciprocidade com suas circunstâncias, a querer dizer sobre a fonte de onde partiu. João Paulo Alberto Coelho Barreto (João do Rio), nasceu em 05/08/1881 na rua do Hospício, no Rio de Janeiro, partiu em 1921. O autor retratou com maestria sua cidade no início do século XX, ou seja, ao exercitar um aprendizado peripatético, semelhante aos pensadores gregos, caminhava e anotava o que via, sentia, percebia com os óculos de suas possibilidades. É preciso talento para transcrever a fenomenologia das ruas, sua poética, peculiaridades, personagens, as casas e prédios colocados abaixo para renascer noutra esquina. As pessoas e seus trajes, chapéus, sapatos, convicções, inseguranças. Bem como aquilo que se refugia na expressividade de seus dias.     João do Rio diz assim: “Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! (...

No intervalo lucidez louca*

Não sou Clarice mas sinto desejo de expressar o que corre em minha alma sem virgulas e pontos finais num pensar que vai acontecendo sem censura na loucura de ser quem sou no perder e me achar no meio destas escutas do meu ser terapeuta mulher amante amiga mãe múltiplas de mim que dissolvem e se unem no tagarelar e silenciar sorrir chorar deixando sair Dioniso com suas bacantes homenageando Afrodite nos pés de mercúrio em direção a Júpiter me embriagando de palavras em poesia me encantando com o tudo e o nada sentindo o caos no cosmos infinito fazendo intervalos no respirar não precisando seguir normas nem ser perfeita comer pipoca sem culpa de ser feliz barulho de ambulância lá fora na espera de meu pai que parte e ainda dorme em paz sabendo nada do depois mais fiando que existe algo indefinido na certeza deus no meio de muitas dúvidas fazendo as pazes com as máquinas e convivendo nos intervalos com distantes virtuais que se tornam presentes e me aquecem como este café quente nesta tar...

Antipsiquiatria e filosofia clínica***

A psiquiatria biológica não é medicina, não é científica, seus medicamentos não são tratamentos e seu livro Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM em inglês) não diag-nostica nenhuma doença mental. Mas se tudo isso for uma verdade, o que tem a ver com a filosofia clínica? Sem entrar na questão ideológica que há por trás da psiquiatria biológica - a construção de conceitos de “doenças mentais, o jogo do lucro que promove, favorece e impulsiona a indústria farmacêutica e o grupo de elite dos criadores da medicalização da vida, a reengenharia social através dos poderes institucionais da própria psiquiatria e das instituições que a apoiam etc. - ela é o oposto contraditório da filosofia clínica na questão de como se percebe o fenômeno humano. Em primeiro lugar, a psiquiatria biológica usa do verniz da medicina e da ciência como formas de “investigar” o comportamento humano. Digo “verniz” porque não passa disso, pois, psiquiatria biológica não é medicina nem ciência. M...

Literatura na vida e na clínica*

Relação continuada que sobrevoa ideias complexas e aterrissa em sensações, a nossa e a dos livros. Quem já não capturou ou se deixou capturar pelas emoções, até dos jargões neles contidos. Galeano, no enfrentar silêncios para recuperar o não dito, é danado. Ele nos faz reverberar em outro plano, flexibiliza o fadado. Momento do devaneio poético, diria Bachelard. De tanto concentrar para ordenar imagens - como plantas, necessitam de terra e de céu - o imagético enlaça o simbólico e encontra novos imaginários. Jung, Campbell... O escarcéu. Utopia... Por intermédio dos livros exercitamos maneira nata, em seus mais diversos gêneros, de enxergar a nós mesmos e até manejar circunstância que mata. Distopia... As pessoas no Pessoa acordam outras em nós. Qual a sintonia... Termos agendados no intelecto partejando ideias... Ressignifica e marca autogenia. Navegar Camões nos arrebata. Ora pela tormenta que clama por sonhos. Ora pela calmaria que suspende a vida que a nós se ata. Clarice é seca pa...